Arquivo Histórico Ultramarino

© Rui Sérgio Afonso 2021

Arquivo Histórico Ultramarino

Como reinventar um arquivo histórico colonial?

Filipa Lowndes Vicente
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Em 1931, no início do Estado Novo, foi criado o Arquivo Histórico Colonial, lado a lado com outras instituições e organismos centrados no projeto colonial português. O seu objetivo era o de preservar, classificar e facilitar o acesso à documentação relativa ao Império Colonial Português. Hoje, continua a ter a mesma função. Como pode um arquivo histórico colonial reinventar com uma abordagem pós-colonial?

As palavras importam: do “colonial” ao “ultramar”

Fundado em 1931 para preservar toda a documentação relacionada com a experiência colonial portuguesa, foi-lhe dado o nome de Arquivo Histórico Colonial. Em 2021, noventa anos depois, denomina-se Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). A mudança de nome deu-se em 1951, quando uma revisão ideológica do Ato Colonial levou inúmeras instituições e documentos a substituírem a palavra “colonial” por “ultramarino”. No início, tinha como objetivo ser o lugar da memória material e documental da história passada, presente e futura do Império Colonial Português. Hoje, apresenta-se como espaço que contém cerca de “16 km de documentação textual e de imagem, relativa aos portugueses e aos povos com que se relacionaram, entre o final do século XVI e 1974–75”, ou seja, entre o século de Quinhentos – na sequência das primeiras viagens marítimas organizadas por Portugal e as primeiras ocupações de territórios para lá do continente europeu – a data da revolução de 25 de Abril de 1974, que pôs fim às quatro décadas do Estado Novo, a ditadura liderada por Salazar e Marcello Caetano, e a data do “fim do império”, 1975, depois de uma longa guerra de libertação dos territórios sob domínio português.

Se em meados do século XX o arquivo passou de “colonial” a “ultramarino”, porque é que o fim do império colonial não levou a uma nova alteração do nome? A palavra usada hoje para descrever o âmbito do arquivo é “relação” – os portugueses e os povos com que se relacionaram. Que outras palavras poderiam definir um arquivo “colonial” ou “ultramarino” a partir do momento em que vivemos no “Pós”? O Arquivo Histórico Ultramarino fica numa rua bonita de Lisboa, a Calçada da Boa-Hora, mas Boa-Hora também não seria um bom nome para designar esta “relação”. As palavras importam. Pensarmos em cada uma das palavras que nomearam esta instituição ajuda-nos a compreender a sua história.

  

“Arquivo”: Desde que, há cerca de 20 anos, Anna Laura Stoler ou Achille Mbembe, e tantos outros, nos desafiaram a pensar no arquivo colonial enquanto “sujeito” e não apenas enquanto “fonte”, que o arquivo se tornou tema e problema central dos estudos pós-coloniais. 

Se já Michel Foucault o pensara como lugar de poder e conhecimento e Jacques Derrida o teorizara enquanto “febre” e “desejo” psicanalítico, projeto científico constituído por camadas infinitas de memórias, a geração seguinte de arquivistas e académicos de várias formações veio pensá-lo enquanto objeto, lugar de produção de conhecimento, e não apenas lugar de armazenamento de conhecimento. Derrida também insistiu na etimologia da palavra “arquivo” – arkhé que, em grego, significa o princípio, a origem das coisas, a génesis.

O Arquivo Histórico Colonial, instituído em 1931, herdou a documentação de uma outra instituição criada em 1883, a Comissão de Cartografia. 

A ciência do mapeamento, das cartas desenhadas dos territórios foi determinante para consolidar a ocupação do território africano, nas últimas décadas do século XIX. O mapa do continente africano foi objeto de um jogo político e diplomático de riscos, traços e fronteiras. Nas tensas e conflituosas negociações entre as diferentes nações europeias com ambições africanas, a cartografia era a ciência legitimadora, que deveria provar quem já lá estava, quem tinha direito a continuar lá ou quem chegara recentemente, mas detinha os meios para impor a sua presença. Nos lugares mapeados, decorriam as expedições (também as negociações e conflitos com os locais), com o recurso aos marcos geodésicos, armas, máquinas fotográficas, instrumentos de medição e desenhos de traços no papel – os mapas que foram guardados ou produzidos pela Comissão de Cartografia e, depois, transferidos para o Arquivo Histórico Colonial. Hoje, a coleção de cartografia manuscrita e impressa de todos os espaços que foram colonizados por Portugal – Angola, Cabo Verde, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Brasil, Timor, Macau, Índia – é uma das dimensões do arquivo.

Os mapas não chegavam e a palavra “histórico” substituiu a especificidade de “cartografia”. Em 1931, três eixos classificatórios principais estruturaram a massa gigantesca de documentação que passou a integrar o Arquivo. Por um lado, a cronologia, a desenhar uma linha do tempo com início no século XVI; por outro, o espaço, a geografia imperial portuguesa, mais inconstante nos seus cruzamentos com o eixo temporal. Finalmente, o critério temático, a mimetizar a própria estrutura do estado colonial – em que os nomes dos organismos que produziam a documentação em “vida” continuam presentes quando entram no Arquivo, simultaneamente como “cemitério” e “templo”, nas palavras de Mbembe.

Sala de leitura, AHU 2021. Foto: © Rui Sérgio Afonso

Os documentos são os “fragmentos de vidas e pedaços do tempo” que a “alquimia” do arquivo transforma em “coerência”, “totalidade”, “continuidade” e “unidade”. Com a força acrescida e simbólica de pertencer à nação – são públicos e, teoricamente, qualquer um tem direito a aceder-lhes. Mas se os arquivos contêm em si a autoridade do Estado – a ponto de se poder considerar que nenhum Estado existe sem arquivos –, também contêm os seus calcanhares de Aquiles. O arquivo pode ser ameaça, crítica, prova do crime, subversão e denúncia (não por acaso, e como escreve Mbembe, mais uma vez, tantos Estados ou instituições censuram, destroem ou ocultam os seus arquivos). Não serão os arquivos coloniais que existem na pós-colonialidade também o calcanhar de Aquiles do colonialismo? Afinal eles guardam – mesmo se nas entrelinhas, silêncios e vazios – tudo aquilo que se pode virar contra eles. Só têm que ser usados, como propôs Stoler no seu trabalho sobre arquivos coloniais, inspirada por Walter Benjamin, “a contrapelo” [ against the grain ].

Finalmente, a palavra “Colonial”. Se em 1931 era essa a palavra de ordem – pois, um ano antes, tivera lugar o Ato Colonial (a lei constitucional que marcou um antes e um depois na identidade imperial portuguesa), vinte anos depois, em 1951, foi revisto e com ele os nomes das coisas. Nessa altura, a palavra “colonial” tornara-se demasiado problemática no mundo do pós-guerra em que descolonizar era já uma realidade para várias novas nações. As colónias passaram a chamar-se “províncias ultramarinas”. “Ultra-mar”, para além do mar, remetia agora para uma geografia e não para um modelo, desigual, de governo. Portugal passou a ser ultramarino. O seu Arquivo Histórico também: “Arquivo Histórico Ultramarino”.

Se as palavras importam, as pessoas também. O rol dos seus diretores é representativo da própria transformação da profissão: o primeiro é António José Pires (1861–1938), conhecido por Pires Avelanoso. Bibliotecário-arquivista, era responsável pela documentação do Ministério das Colónias quando foi escolhido pela Sociedade de Geografia de Lisboa para presidir à comissão preparatória da criação do AHU. Cumprida a tarefa, tornou-se o seu primeiro diretor interino. Seguiu-se, até 1946, Manuel Múrias, um homem com um perfil muito distinto – é o político e inteletual do regime e já não o técnico. Entre 1946 e 1975 regressará um técnico. De facto, é Alberto Iria que desenvolverá o arquivo até ao fim do momento histórico que justificou a sua existência. Seguiu-se Isaú Santos, com um interesse especial por Macau, até 1988 e, depois disso, e excetuando a direção de Miguel Infante entre 2003 e 2005, o arquivo foi dirigido por duas mulheres. Maria Luísa Abrantes entre 1989 e 2003 e, desde 2005, Ana Canas Delgado Martins, atual diretora. São representativas de uma feminização da profissão de arquivista na segunda metade do século XX, que só mais recentemente se manifestou na ocupação de cargos diretivos por mulheres.

Tempos: cronologias da documentação, cronologias do arquivo

Tempo e espaço. Comecemos pelos tempos do Arquivo Histórico Ultramarino. A cronologia dos documentos escritos é tão longa como a dos documentos cartográficos, cinco séculos de papel, escrito ou desenhado. A fotografia, pelo contrário, é o objeto moderno do arquivo, a tecnologia de Oitocentos que tem inscrita no seu bilhete de identidade apenas um século de história, desde meados do século XIX até 1975. Mas o Arquivo Histórico Ultramarino, enquanto espaço, instituição e categoria só foi criado em 1931. O Ato Colonial de 1930, o primeiro documento constitucional do Estado novo, significara uma revolução jurídica e administrativa que foi capaz de transformar o império num projeto centralizado e planeado como nunca antes o fora: o Império Colonial Português.

O Estado criou estruturas, pessoas, instituições, leis e nomes para consolidar a sua identidade colonial e começou a valorizar os modos de o anunciar dentro e fora das fronteiras nacionais. A propaganda era agora uma das prioridades. A outra era a de criar espaços onde documentos, espécimes, produtos, objetos, mapas, fotografias, livros, pudessem ser lidos e vistos, estudados por especialistas e cientistas ou olhados pelo grande público, que era maioritariamente analfabeto. Exposições, museus, bibliotecas, arquivos, espaços de conhecimento e de entretenimento, em que o Portugal colonial pudesse, literal ou metaforicamente, ser apropriado por “todos”. Mesmo que nunca chegasse a "todos".

Já havia, claro, décadas antes, uma genealogia de iniciativas dominadas pelo “esforço colonizador” – a criação da Sociedade de Geografia em 1875; as várias expedições de mapeamento e conhecimento do território africano, que tinham precedido ou acompanhado as campanhas militares que visavam submeter as populações locais ao governo português; o investimento na construção de cidades e edifícios do Estado nas colónias africanas; e a exploração massiva de formas de trabalho braçal das populações colonizadas. Mas em 1930 teve início uma outra fase. Mais de cem anos depois da “perda” do Brasil, e com uma Índia tão encolhida como esquecida, África tornava-se agora sinónimo de Império.

Depois do mapeamento, exploração, e divisão com outras nações europeias, havia que consolidar e desenvolver. E estudar. Em 1926, uma Ditadura Militar punha fim à Primeira República. A Europa já renascera depois da mortífera primeira Guerra e estava agora, ainda sem saber, a caminhar para a segunda. As colónias africanas e asiáticas eram visíveis nas cidades europeias como nunca antes o tinham sido. Nas exposições coloniais, por exemplo, a de Paris, em 1931 a mais simbólica, que Portugal reproduziu pouco depois com a sua Exposição Colonial do Porto de 1934, mas também numa cultura visual mais ampla que, sob a forma de revistas ilustradas, postais, fotografias, livros ou folhetos, transformava as colónias em imagens.

Ao mesmo tempo, surgiam, em vários lados do mundo, gestos, palavras e imagens anticoloniais. Foi a 12 de Março de 1930 que Gandhi deu início à Marcha do Sal ou Satyagraha do Sal, um ato de protesto contra a proibição da extração de sal na Índia colonial Britânica. Numa colónia asiática, a maior e mais simbólica de todas, um ato de subversão pacífica anunciava aquilo que aconteceria 17 anos depois, quando a Índia deixou de ser britânica. Em Lisboa, Luanda ou Maputo, como em tantas cidades metropolitanas ou colonizadas, era o início de três décadas muito ativas de construções físicas e institucionais de lugares de ciência e conhecimento colonial; mas, na Índia, tornava-se visível aquilo que já estava a acontecer em todo o lado, mesmo que em modos mais reprimidos ou ténues – uma resistência, pacífica ou armada, aos sistemas de opressão e de exploração por parte daqueles que eram tidos como “colónia”, “império” ou “ultramar”. Como é que essas formas de resistência – as caminhadas silenciosas de Gandhi – estão presentes nos arquivos coloniais? Questões como estas têm contribuído para descolonizar os arquivos. Mas será descolonização suficiente encontrar no próprio arquivo as suas subversões?

Lugares no arquivo e do arquivo

“Portugal não é um país pequeno”, a frase, enunciada a partir da Exposição Colonial do Porto de 1934, foi tão repetida pelos agentes do Estado Novo no passado, como pelos investigadores do presente, que a estudaram já sob a égide – e a ironia – do pensamento pós-colonial. É este país “grande”, imaginado na década de 1930, que dita as geografias/categorias que permeiam o Arquivo Histórico Ultramarino, numa rede de constantes cruzamentos. Moçambique, Brasil, Angola, Timor, Goa, Macau, S. Tomé e Príncipe, Diu, Cabo Verde, Guiné. Algumas doações, também remetem para geografias específicas – o Fundo Francisco Mantero, por exemplo, com documentação de 1874 a 1978, inclui papéis privados da família como das várias empresas familiares, sobretudo em S. Tomé e Príncipe, com tentáculos num mapa que é também uma cartografia do trabalho forçado, braçal e racializado, que se prolongou em espaços coloniais pelo século XX. É um exemplo entre tantos, de como o privado e o público, o individual e o Estado, o pessoal e o político se cruzam de maneiras infinitas neste arquivo como em tantos outros.

“Portugal não é um país pequeno”, Exposição Colonial de 1934 (org. Henrique Galvão) “Portugal não é um país pequeno”, Mapa feito no âmbito da Exposição Colonial de 1934. “Org. Henrique Galvão; Edição de iniciativa da Câmara Municipal de Penafiel; Impressão da Litografia Nacional - Porto". Este é um dos vários desenhos que usaram a mesma ideia - de sobreposições de fronteiras - e foram reproduzidos em vários formatos, sobretudo postais ilustrados, e em diferentes línguas: francês e inglês, além de português.

E o lugar do Arquivo? Além de uma coleção de documentos, quase sempre escritos, mas também iconográficos, os arquivos são também edifícios, instituições públicas e órgãos do Estado que os criou. Esta dimensão arquitetónica e tridimensional é relevante para pensarmos o Arquivo Histórico Ultramarino. Em primeiro lugar, pensemos no edifício do arquivo; em segundo lugar, no espaço da cidade onde se encontra, Belém, em diálogo com as várias outras instituições, monumentos e referências coloniais ali existentes.

AHU: sala de depósito 12 onde se encontra a documentação mais importante do séc. XX 1979 Foto: © Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Portugal

Manuscritos, mapas, fotografias: a materialidade móvel do império

Ao longo de várias décadas, antes e depois de 1975, ano das independências das colónias, foram vários os projetos de catalogação de fundos que tentaram pôr ordem e dar sentido a esta vastidão de tempos e espaços sob a forma de documentos. Catálogos, índices, inventários – trabalho em progresso , porque os seres humanos e recursos são sempre escassos – transformam, através de critérios de classificação, os códices, avulsos, caixas, maços, rolos, microfilmes, álbuns fotográficos, postais e fotografias em documentos. Esses objetos, que já têm nome na língua de arquivo, recebem palavras-chave, categorias e “cotas” para se tornarem “documentos” facilmente encontráveis. São estes os mapas dos arquivos que permitem voltar a um lugar sem nos perdermos.

A nomenclatura colonial continua a definir o arquivo do presente. A estrutura do Estado, cruzada com o nome do território colonial a que se refere: o “Conselho Ultramarino” de “Angola”, do “Brasil”, ou de “Timor”, um dos principais fundos do Arquivo Histórico Ultramarino, antecede outras estruturas do Estado, como a Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, ou o Ministério das Colónias, numa árvore genealógica de poderes oficiais com múltiplas ramificações – da Direção Geral da Economia à da Educação; da Direção-Geral de Saúde e Assistência à das Obras Públicas. Entretanto, ao longo do século XX, nos espaços coloniais criaram-se estruturas a mimetizar, em nome e funções, aquelas que já existiam na metrópole. Em 1955, por exemplo, foram criados os Institutos de Investigação Científica de Angola e Moçambique. O Arquivo do Estado Colonial em todos os seus tempos e espaços, a diacronia e a sincronia.

Entre a documentação escrita e a cartográfica, interessa-nos destacar aqui a fotográfica, o formato que, por diversas razões e também pela sua modernidade, ocupou um lugar mais subalterno nas hierarquias da documentação histórica, presentes neste Arquivo como em tantos outros. Durante décadas, a fotografia foi o parente pobre dos arquivos portugueses porque têm sido, sobretudo, os historiadores a frequentar os arquivos e, se a escrita é a sua enxada e a sua terra, as imagens são, quanto muito, ilustrações da palavra. 

 Assim se explica que o mar gigantesco de fotografias, existentes neste e noutros arquivos portugueses de origem colonial, só há pouco tempo tenham começado a ser alvo de tratamento sistemático. Ao contrário daquilo que aconteceu noutros países ex-colonizadores, a “viragem fotográfica” em Portugal deu-se recentemente. Duas notáveis exceções vêm de mulheres estrangeiras, não-historiadoras, a trabalhar em temas portugueses nas últimas décadas do século XX. 

A etnógrafa austríaca Beatrix Heintze (1939), publicou In pursuit of a chamaleon: Early ethnographic photography from Angola in context , e a antropóloga inglesa Jill Dias (1944–2008), a viver em Portugal e casada com um português, escreveu Photographic Sources for the History of Portuguese Speaking Africa, 1870–1914.

Uma parte substancial das fotografias sob a custódia do AHU (e, desde 2015, geridas pela Universidade de Lisboa) são provenientes de uma outra instituição com uma história colonial, o Instituto de Investigação Científica Tropical, anteriormente denominado Junta de Investigações Científicas do Ultramar (a palavra “científicas” só acrescentada em 1973), com uma genealogia partilhada com o Arquivo Histórico Ultramarino, pois também com origem na Comissão de Cartografia. Enquanto o Arquivo Histórico Ultramarino era já arquivo histórico, a “Junta”, agora “Instituto”, era o laboratório do presente e do futuro, onde se produzia a ciência e se praticavam as políticas e decisões que, mais tarde, seriam matéria de arquivo.

Alguns destes fundos fotográficos estão classificados, restaurados e digitalizados (na plataforma Arquivo Científico Tropical – Repositório Digital) outros, muitos, estão ainda por classificar. Como todos os arquivos públicos portugueses, o Arquivo Histórico Ultramarino também se debate com a falta de financiamento para fazer face às suas necessidades. As pessoas e os recursos são parcos e existem ainda muitos fundos fotográficos à espera de “organização, catalogação e tratamentos de conservação e restauro”, as quatro dimensões com que o Arquivo tem vindo a intervir nas coleções fotográficas.

AHU, Gabinete de Restauro 1979. Foto: © Instituto de Investigação Científica Tropical

Da materialidade ao digital; da ex-metrópole para as ex-colónias

Em 2021 o Arquivo Histórico Ultramarino, como muitos outros arquivos no mundo, ocupa dois espaços distintos, que tanto se sobrepõem como podem estar em tensão – o espaço físico e o espaço virtual. Em Lisboa, o Arquivo Histórico Ultramarino, atualmente, só abre ao público à tarde, de segunda a sexta, das 13.15 às 18.15, mas no seu site, está aberto 24 horas por dia e em qualquer lugar do mundo. No entanto, sendo os materiais digitalizados uma ínfima parte dos seus 16 km de documentação, a experiência sensorial e física do arquivo continua a ser dominante – podemos ver e ler, mas também tocar e cheirar (o cheiro do tempo no papel) documentos com décadas ou séculos de vida, apenas as luvas e a lentidão dos gestos a mediar o contacto, a “consulta”, como nos indica a linguagem arquivística.

Perde-se e ganha-se nesta passagem da tridimensionalidade, presencial e convocadora dos cinco sentidos, para a bidimensionalidade que permite ler e ver sem tocar. Perde-se a materialidade que tanto nos diz sobre o documento, mas ganha-se, por exemplo, na possibilidade de acesso e de partilha que subverta a própria essência de um arquivo colonial construído na metrópole. A pergunta, incómoda e legítima, que se reitera nos últimos anos – como lidar com os gigantescos legados coloniais do passado nas ex-metrópoles coloniais? – pode ser parcialmente respondida com o investimento em arquivos digitais. Sobretudo quando estamos a falar de documentos bidimensionais como a folha escrita, a fotografia, ou o mapa impresso ou manuscrito. Mas estes vêm também colocar novos problemas, de ordem ética – que implicações e problemas advêm desta disponibilização massiva e acrítica de imagens produzidas em contextos de desigualdade onde, quase sempre, os representados, quando são os “colonizados”, não têm nome nem identidade e não participaram nos processos de reprodução e divulgação da sua imagem?

AHU, Sala de trabalho e depósito 1979. Foto: © Instituto de Investigação Científica Tropical

AHU, Sala de Leitura 1979. Foto: © Instituto de Investigação Científica Tropical

Muito antes da politização mais recente em relação aos destinos e sentidos de tantos arquivos coloniais do presente, já existiam projetos de “devolução” de documentação, mesmo que sempre centrados nas possibilidades de “reprodução”. O projeto Resgate (de Documentação Histórica Barão do Rio Branco) foi criado em 1995 numa parceria entre os governos brasileiros e portugueses com o objetivo de identificar, reproduzir e disponibilizar documentos históricos sobre a história do Brasil, existentes fora do Brasil, sobretudo em Portugal. A partilha, através de parcerias, de documentação com os países que faziam parte da geografia ultramarina, tem sido essencial para a reconstituição crítica da história. Mas, a vasta maioria dos arquivos, museus ou outras instituições mais híbridas (Sociedade de Geografia, o Museu e Arquivo Histórico Militar) não iniciou ainda os seus processos mais profundos de descolonização. Em Portugal, o subfinanciamento crónico e desgastante destas instituições reflete-se ao nível material e imaterial. Não se trata apenas de classificar, restaurar, organizar, digitalizar, mas também de pensar criticamente sobre este imenso legado colonial. Isto implica uma reflexão que é mais epistemológica do que técnica, mais política do que prática.

Outras perguntas se impõem. Qual o sentido de falar de um novo Museu das Descobertas em Lisboa, quando a cidade está cheia de espaços, documentos, imagens e objetos dos “Descobrimentos” a precisar de urgente investimento financeiro e de uma necessária reflexão crítica e ontológica? Muitos investigadores (mas também artistas e realizadores), provenientes de vários lugares, geográficos e disciplinares, têm vindo a usar os arquivos coloniais portugueses para repensar uma história passada e recente das “relações” entre Portugal e os lugares do mundo que já foram coloniais, imperiais ou ultramarinos. Falta, agora, que este processo autorreflexivo seja feito pelas próprias instituições.

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BIBLIOGRAFIA

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Última edição em: 21/12/2024 16:18:48